O trabalho em Serviço Residencial Terapêutico (SRT) e a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)

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O trabalho em SRT implica numa fusão, na integração entre as fronteiras artificiais, socialmente construídas, do institucional e do afetivo.

Quando estamos em uma relação de vínculo afetivo com as pessoas que cuidamos, nós ficamos sondando as probabilidades do futuro imediato para evitar desenlaces dolorosos. É assim que eu vivo o imenso amor que sinto por meu filho.

Por razões profissionais fazemos isso no trabalho em saúde constantemente. Nós nos vigiamos, aceitamos a supervisão permanente, exercemos a cogestão compartilhada dos processos de trabalho. Ferimos, assim, nosso ego e uma certa ilusão de controle, em busca de um objetivo maior.

Fazemos tudo isso em nome da tentativa incessante de controlar os eventos adversos que ameaçam a saúde do paciente e a nossa própria saúde, dado que o sofrimento do usuário, produz diversas intensidades de sofrimento em nós.

A coisa mais revolucionária que fazemos no trabalho em saúde mental, o desafio que nos é feito todos os dias, consiste aprender e refinar nossa capacidade de ouvir. Nós escutamos com o pressuposto de que a fala contém sempre uma verdade em relação a afirmar-se ou negar-se na vida.

Estamos destinados a uma objetiva incapacidade de mentir sobre a dor e sobre o prazer, pelo menos, essencialmente, para quem de fato nos escuta.

Nas relações sociais fazemos encenações constantemente. Somos gentis e basicamente conversamos para dizer aos outros que aceitamos e somos aceitos, no grupo social em que interagimos. Desse modo, os assuntos de que falamos em uma festa ou num bar, num intervalo no trabalho ou numa visita a familiares ou amigos, nunca são o verdadeiro tema de nossa afetividade e sentimentos. Nossas conversas sociais são como uma suavização do que é importante, mas pesado demais para o cotidiano de nossas relações.

A conversa social, aquela casual em que buscamos afetar leveza e amenidades, serve como anedota para trocarmos signos de afeto e pertencimento. Eu e você gostamos um do outro porque somos iguais. Somos da mesma tribo.

É no contato físico, no olhar, que transparecem afetos de dor ou alegria. Subvertemos, nesses gestos sutis, os encontros sociais e passamos a tratar diretamente das verdades íntimas.

No trabalho, essa leveza se dissipa na consecução dos objetivos que entrelaçam inter e transdisciplinarmente os fazeres e saberes de cada um em uma equipe. Ali é preciso a busca sistemática do sentido e do objetivo da ação.

Mas quando seu trabalho ocorre em trocas de turno ou plantão num local que é a habitação de outras pessoas?

Como é morar, de modo afetivo, ter seu próprio espaço de autonomia, onde outros, os seus cuidadores, têm seu lugar institucional de trabalho?

Esse é o encantamento e o desafio de ser profissional da equipe de saúde em um SRT da Rede de Atenção Psicossocial.

Desde a psicanálise estamos percebendo que é meio que impossível mentir sobre a subjetividade.

Se você realmente estiver sendo escutado, a tua mensagem será recebida como verdadeira. No sentido de que nossas subjetividades são emergentes, nós as percebemos acontecendo conosco e em nenhuma medida as controlamos. De uma expectativa do bom, que nos leva a um determinado curso de ação, recorrentemente, experimentamos o ruim.

De fato, um trauma pode nos tornar insensíveis a dor e ativos na produção do nosso sofrimento. Um pai que espanca a esposa, pode fazer emergir num filho homem, um comportamento masoquista. Ele busca vivenciar na dor um alívio para o trauma infantil. Há muita contradição. Mas não uma mentira.

Mentimos sobre fatos porque eles tem sua própria verdade. Ou ela é verificada ou não. Mas o que dizemos sobre como sentimos a vida é sempre uma verdade. Trata-se de fazer referência ao impulso que nos leva a agir.

Se numa mente a linguagem indica impulsos de auto destruição, como isto pode ser mentira? Eu declaro minha inclinação pela morte do mesmo modo que digo que é rocha, o que se apresenta como um vegetal? Não. Porque um distúrbio da percepção está implicado nas duas afirmações. Mas o que fala do meu impulso não é da mesma forma que o que fala da minha constatação.

Ocorre de alguém sentir profundamente que o comunismo é o mal das coisas no agora. Este sentimento profundo indica um critério para decidir o que é ruim. Então, crendo ou não nesse critério, quem deseja a morte de todos os simpatizantes da utopia comunista está sendo sincero. Acima de tudo está desnudando o seu critério de valor.

Alguém que diga que o extermínio das pessoas por seu modo de pensar é errado está, verdadeiramente, expressando outro valor. Desse modo há verdade em afirmações contraditórias. Basta saber ouvir.

Desse modo é com o delírio. A dificuldade em ouvir a verdade do delírio reside na dificuldade de ouvir o outro em sua mais profunda alteridade.

Em geral, dizemos que não tem sentido todo o discurso que não se alinha com o espírito de verdade que tomamos da sociedade e usamos para afastar de nossa mente incertezas, imprecisões e imprevisibilidades inerentes a essa forma de verdade que tomamos como “a verdade”.

Em nosso lar, essas verdades que ordenam a precária arquitetura de nossa percepção da realidade, são intocáveis.

Somente na sociedade temos que suprimir nossa verdade íntima, pode-se dizer nossa loucura, em nome de um pertencimento identitário fraco.

No entanto, não podemos fluir pela existência sem algum sentimento de pertencimento profundo, em outras palavras, do amor que experimentamos em nosso lar.

Como disse no início, unir o trabalho e o local de habitação é um empreendimento da busca por uma produção de saúde magnífica.  Um desafio que nos leva ao que chamamos de vínculo terapêutico ou seja uma fusão do nosso destino com o do outro. Isso ocorre de um modo que o ruim na vida do outro será ruim para mim e o alegre será, de modo similar, compartilhado.

Eu cumpro minha tarefa institucional. Mas se construo vínculo terapêutico com meus pacientes, usuários ou moradores, no caso do SRT, estou ligado afetivamente aos desenlaces do destino desse outro a quem estou ligado pelo gesto de cuidar.

Não é que não seja exatamente assim em todas as relações humanas. Mas na RAPS e no SRT, buscamos estar cientes e conscientes disso.

Muito obrigado!