Cobrando por fora: Farinha pouca, meu pirão primeiro.

12 votos

 

 

“Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em muita autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem nas mãos…”
Darcy Ribeiro

Uma recente decisão do Supremo Tribunal Federal beneficia profissionais médicos por ação impetrada pelo Conselho Federal de Medicina do Rio grande do Sul. Eles podem cobrar em separado por acompanhamento a pacientes em tratamento hospitalar pelo SUS. Também os hospitais estão autorizados a cobrar por serviços diferenciados de hotelaria. Tudo conforme notícia publicada em jornais do RS no último dia 19 de Maio.

Considerando essa decisão que envolve duas corporações (a corporação dos médicos e a do judiciário) que embora sediadas e servindo ao contribuinte no terceiro mundo, levam vidas socioeconômicas no padrão de países ricos, tecemos as seguintes considerações:

1. Ou a decisão é inconstitucional e fere o princípio da igualdade dos cidadão perante a lei e os princípios da integralidade de da universalidade do acesso a saúde inscritos na carta magna;

2. Ou a bem da necessária isonomia entre trabalhadores que desempenham funções nas quais a segurança e a vida dos pacientes estão em jogo, todos devem se beneficiar da dita sentença espúria.

A atenção em saúde vem se tornando mais complexa a cada onda do avanço tecnológico que se acelera vertiginosamente neste início de milênio. Somente equipes multidisciplinares podem dar conta do desafio de promover, recuperar e dar ao cidadão o benefício de uma vida cada vez mais longeva e de qualidade. O cidadão paga impostos e se vê frente aos sistemas de saúde numa das condições humanas de mais fragilidade.

Seu pleno atendimento, seguindo os moldes da integralidade das ações de saúde, exige a articulação de inúmeros saberes tecnológicos. Todos eles são organizados e articulados pelo agente público na tarefa de cumprir o preceito constitucional de que cabe ao povo prover os recursos financeiros necessários para que o Estado possa cumprir o dever constitucional de entregar a população o pleno direito à saúde.

Assim, exigimos do judiciário as devidas conseqüências do entendimento doutrinário que concedeu aos médicos e hospitais o direito de cobrar em livre negociação com o agente econômico mais fragilizado da sociedade, o doente, um pagamento extra além daquele que é pago no recolhimento de impostos:

 – Em primeiro lugar, ou bem STF revê sua decisão e reconhece a inconstitucionalidade da sentença. Ou, alternativamente, concede o mesmo direito que outorgou ao profissional médico para o eletricista do hospital, para o técnico em eletrônica que mantém o equipamento de vídeo-cirurgia funcionando adequadamente, aos trabalhadores da equipe de enfermagem que tem de atender até a 50 pacientes em uma unidade durante um turno de trabalho. E não podemos esquecer-nos dos guardas para evitarem que o paciente seja contaminado por um vírus levado até seu leito por um visitante contaminado pelo vírus H1N1 e assim por diante.

Ninguém busca conforto em um atendimento médico hospitalar. Depois de pagarem 40% de suas rendas em impostos, qualquer gasto extra com saúde é feito em nome da garantia de vida. Conforto as pessoas compram quando tem saúde.

E, se é assim, então o STF reconheceu que para alguns, talvez seus parentes, fazer um transplante de órgão pelo SUS é uma alternativa boa. Mas se o filho do juiz poder agregar a excelência do serviço de transplantes do SUS o extra de escolher o médico e as acomodações de hotelaria no hospital, porque ele não deveria ter o direito e pagar um por fora para os demais trabalhadores da equipe hospitalar.

Provavelmente é por ter um judiciário mais coerente que em países do primeiro mundo os ricos tenham de comprar órgãos para transplante de pobres do terceiro mundo. Também deve ser por isso que eles realizem suas cirurgias longes de seus países.

Finalmente, é por isso é que há o tráfico de órgãos humanos no mundo e no Brasil passaremos a ter o tráfico de bom atendimento no mercado paralelo da saúde se esta decisão do STF não for reformada.