Harry Potter e as Relíquias da Morte

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Uma resenha para pais e mães antenados

Li o livro neste feriado. Minha desculpa era a de conhecer o mundo dos heróis imaginários que fará parte da infância de meu filho de cinco, quase seis, anos. Porém, me surpreendi com a força de uma narrativa que consegue ser honesta ao tratar de magia, dos dogmas e de algumas ilusões vendidas pela tecnologia da hiper-modernidade.

“Harry Potter e as Relíquias da Morte” encerra a série de livros para adolescentes de J. K. Rowling. Há preconceito com as histórias de fantasia e de magia. Isto pode diminuir este gênero literário a um subtipo de literatura escrito para adolescentes.

Mas temos que concordar que comparando esta fábula com toda a nossa filosofia e teologia judaico-cristã, Harry Potter fica maior. Bem maior.

A fábula traz de volta a magia e a tradição dos cultos célticos que antagonizaram e foram sendo absorvidos pelo cristianismo ao longo de toda a idade média. O cristianismo é uma saga conhecida que começa no natal, tem seu auge com a crucificação, passa pela queda do império romano, enfrenta os cultos animistas e politeístas nórdicos e termina na ascensão do monoteísmo ocidental. É uma história de sangue e ódio alternando sincretismo e tolerância que, em parte, moldaram o imaginário do mundo em que vivemos. Gregos e cristãos influenciaram o renascimento e iluminismo de uma forma que até pouco nem suspeitávamos.

Na série de livros que contam a saga do menino e adolescente Harry Potter um aspecto me chamou a atenção. Enquanto nosso mito de fundação, como narrado na bíblia, está impregnado de promessas a respeito da “vida” depois da morte, a saga de Poter não vende ilusões. Em nossa infância o catecismo católico ou protestante mostra uma série de eventos se desenrolam prometendo a perenidade da experiência de sentir o tempo passar e “viver” mesmo depois da morte.

No mito cristão, contado por Paulo de Tarso e depois impregnado de conceitos da filosofia grega por Agostinho e Tomás de Aquino, a morte é um evento de passagem onde nosso eu persiste. Podemos sentir nos poros a esperança de que uma existência se estende em eventos dramáticos após a morte. Tudo persiste após a vida. Podemos sonhar ou ter pesadelos com castigos e remissão eterna.

Cabe aos vivos guardar a memória dos mortos, orar para que eles tenham paz, rogar a eles que intercedam por nós. Enfim, projetamos o drama da existência para além da morte e dela de volta a vida através da fé nos dogmas religiosos. Temos na eternidade de gozo divino ou de danação satânica uma fundamentação na providência divina para a ética e para a moral.

Curiosamente no mundo de fantasia e magia de Harry Potter é possível levitar objetos, cobrir-se com uma capa de invisibilidade, interagir com seres fantásticos, conjurar maldições e feitiços de proteção. Mas nada se pode contra a morte. Ela é definitiva e não é objeto de especulação ao longo das centenas de páginas de cada um dos livros.

Uma miríade de seres híbridos interage com os humanos. Existem vínculos bons e maus, todos fundados em encontros no aqui e agora. Um sabor espinosano que regula os encontros que sendo bons ou sendo maus, ecoam na memória do que há de vir. Há toda uma fundamentação diferente para o amor, a lealdade, a honra, a amizade e tantos outros sentimentos ou virtudes, assim como para o ódio e os vícios. Um fundamento para a lealdade que é imanente a vida. Que não negocia com a promessa do paraíso celeste o disparo dos gestos virtuosos.

O bem é desejado, buscado e realizado por seu valor intrínseco. Não se espera que ele nos religue a quem amamos e já não está vivo. Não é feito para barganhar com a providência o acesso ao paraíso eterno. Assume que sempre, enquanto vivermos estaremos ligado aos que amamos.

Assim também é com o mau. O vilão não espera uma recompensa satânica, nem luta pelo triunfo de um anjo caído em guerra contra seu pai celeste. O vilão quer apenas não morrer. E em nome da busca deste poder abandona toda a virtude.

São poucas as histórias em que um herói jamais mata ou impõe sofrimento como na de Harry Potter. E também o vilão assassina, mente, trai e se deleita com a dor de seus próximos. Nada em nome do além. Tudo em nome de um bem maior ou mau maior, nesta vida.

A Santa Inquisição perseguiu e queimou na fogueira mulheres jovens e velhas, desprotegidas da presença de um marido, acusando-as de terém pactuado com satã. Combateram uma crença milenar canibalizando-a. Fizeram da diversidade a outra face da moeda da fé cristã. E nisso foram, tragicamente, muito eficientes.

É certo que no mundo de Harry Potter existem bestas e existem fantasmas. Eles interagem com os vivos. Mas os fantasmas são uma sombra dos que viveram e nada mais. As bestas são inimigas ou aliadas aqui e agora. Não estão em outro mundo. Eles não são as pessoas que morreram e sobre elas não se especula.

A perda de um amigo, familiar ou mesmo de um inocente desconhecido é sentida por todos como irrevogável e definitiva. Sobre o que se passa com eles depois da morte a autora não gasta um único parágrafo. Em tudo e por tudo se sabe que os mortos estão perdidos para os vivos.

O grande vilão apenas parece ter voltado da morte. Aos poucos vamos descobrindo que ele volta mesmo. Mas não da morte. Seus assassinatos e seu desejo mortal o colocam em um estado de hibernação mágica e é de lá que ele ressurge. Transfigurado em um monstro ele lembra a monstruosidade coletiva do nazismo que faz do medíocre Adolf o poderoso e temido Hitler “o Führer”. Aliás, o nazismo e o holocausto judeu são referências constantes em toda a série.

No final, Harry conversa com seu mestre. Ele pergunta se deve morrer naquele momento e o mestre diz que cabe a ele decidir. Ele insiste e pergunta: – E se assim for, se eu decidir morrer, como será? – Seguirá em frente. Esta é a única resposta ao longo de todo o livro a fazer uma menção ao que ocorre aos que morrem.

Em seguida Harry pergunta se a conversa entre os dois está acontecendo e é mesmo real ou ocorre apenas em sua mente. O mestre responde é claro que está acontecendo em sua mente. Mas será menos real por isso?

Esta honestidade com que J. K. Rowling brinda seus leitores é difícil encontrar, mesmo na literatura dita de adultos. Os livros de auto-ajuda são “bestsellers”. Assim como os livros de magia e aventura.

No entanto, os livros de auto-ajuda prometem trazer a mente um poder sem limites. Baseados em fundamentos os mais diversos, seu truque é aproximar dimensões muito separadas da realidade humana. Seja a distancia que nos separa das estrelas, seja a distancia que nos separa do núcleo dos átomos: Anulando esta distancia, toda a fantasia se torna real. E assim nossa mente pode nos dar acesso à realização de todo os desejos.

No mundo de Harry Potter a magia permite fotos que se movimentam nas molduras. Pode-se entrar em ambientes amplos contidos em espaços mínimos. No nosso mundo uma “webcan” pode nos fazer pular de uma sala para outra em qualquer lugar do planeta que esteja conectado a rede.

Em nosso mundo podem as imagens e sons dos mortos se fazerem presentes em filmes, sonhos, memórias, textos ou simples retratos. Mas eles se foram. Nós ficamos. E é só nesse estrito sentido que também podemos dizer que eles foram em frente.

Bem adequado ao nosso tempo. Tempo em que o Papa Bento XVI assume o desejo de uma igreja com menos fiéis, de ocasião, porém com mais católicos realmente fiéis, ao passo em que se trai, exibindo seus sapatos Prada. Aqueles que “o diabo veste”.

É adequado que no mundo de facilidades e confortos em que meu filho está crescendo alguém tenha escrito uma literatura de fantasia e magia ao mesmo tempo mundana, honesta e profana. Portanto, fiel e rigorosa para com os limites da existência humana.

O "mundo de Potter" é mais real que o de “Sofia”. A existência comum e banal é mais bem reverenciada na primeira obra do que na segunda. Embora ambas sejam boas e se prestem a deleites diversos.

De fato recomendo pelo menos este último livro da série. Que ele ajude aos pais a compartilharem o mundo dos filmes que procuram adaptar a obra e que serão vistos e revistos muitas vezes pela geração que nasceu depois da virada do milênio.