Resiliência e antipisiquiatria: O fenômeno Lisbeth Salander.

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Em minha experiência de trabalhador da saúde tenho me deparado com almas destroçadas. Pessoas nascidas e estruturadas desde uma infância de maus tratos, de imersão em contextos familiares adoecidos, miseráveis, afetiva e/ou materialmente. Depois de ter tido contato com parte da obra de Boris Cyrulnik, me alentava pensar em almas sobreviventes, em singularidades ocultas que ousassem passar ao largo dos manicômios, clínicas, CAPS, SRTs, da rua e da miséria do sofrimento, apesar de portarem profundas feridas no corpo e na alma.

Perco-me em devaneios. Imagino o destino de irmãos ou irmãs de alguns pacientes que vivenciaram juntos eventos traumáticos ao longo da infância e que seguem suas vidas. Cuidando de suas feridas íntimas e mantendo variados graus de proximidade/distancia com seus companheiros de infortúnio e hoje nossos usuários.

Depois de todo o debate suscitado pela resenha do Altair Massaro, focando a Nina, de Black Swan, e seu “desafio do corpo sem órgãos” eu mergulhei na leitura da segunda parte da triologia de Stieg Larsson. A triologia tem como protagonistas um jornalista investigativo e uma hacker punk.

De um lado, pessoas “normais” editando uma revista chamada “Millennium” que investiga o submundo da sociedade “normatizada” em instituições com fachada racional e fundamentos caóticos. De outro os personagens do submundo ou de uma meta-sociedade que estrutura e sustenta a ponta o iceberg que estamos acostumados a ver no cotidiano. Tudo muito encarnado, vivo e pulsante.

Curiosamente lido com alguns casos de usuárias que lembram Nina em alguns desfechos e outras que insinuam Lisbeth em suas continuidades. É o caso de uma que se repete em surtos de desespero, em que ataca seu próprio corpo. No momento ela recaiu de novo na enésima e repetitiva crise. Há também outras que já o fizeram, conquistaram suas cicatrizes, mas seguem vivendo e inventando seu devir, por assim dizer, encarnado.

Perdemos alguns destes que acolhemos pelo caminho. Algumas dessas almas encontraram termo. Não podem mais estabelecer sua presença. Somos nós que as trazemos a vida em nossos diálogos. Um morto é uma pessoa que para estar presente necessita de que pelo menos dois vivos rememorem em dialogo sua existência.Os personagens da literatura, diria da arte (porque Nina e Lisbeth Salander habitam simultaneamente o set de filmagem, os roteiros e as páginas de livros) são tão vivos e míticos quanto os mortos.

Dando uma passada breve pela biografia de Stieg Larsson percebi que sua vida foi povoada por personagens como as pessoas que descrevi acima. Salander é em parte uma síntese de potencias resilientes que lhe cruzaram o caminho em sua vida de jornalista investigativo. Pessoas que mantiveram a possibilidade de um devir em meio ao caos. Uma alegoria da conquista de completar um movimento, para então saber por que foi necessário faze-lo, como escreve Boris Cyrulnik, sobre a vida e especialmente a vida longa.

Estou cansado com os eternos retornos do trauma. Da volta incessante da dor a cada instante. Adoro a definição de Lisbeth Salander sobre seu maior trauma: “Quando Todo o Mal Aconteceu”. Isto elimina o retorno do sofrimento sobre a forma de repetição. Abre a existência para a variação na intensidade de sentir a vida que vem. Permite a atribuição de um sentido possível, mas não absoluto para juntar o Gustavo e o Altair na idéia de reconhecer o self, mas não ficar obcecado por ele.

No entanto o mais pertinente no segundo livro da triologia para este coletivo da pensante, a RHS, é o papel da psiquiatria e das instituições de tratamento compulsório (ligadas simultaneamente ao sistema judiciário e ao de saúde) na vida das pessoas feridas na alma durante a infância.

Mikael Blomkvist é o próprio Larsson que se eterniza duplamente, como autor e como personagem. Mas Lisbeth Salander é a legião de excluídos que conhecemos. Mas adornada com “super-poderes” que pessoalmente eu chego a ver, em certa medida, em algumas das pessoas que acompanho.

Stieg Larsson introduz no segundo livro da triologia o psiquiatra que cuidou de Salander depois que “Todo o Mal Aconteceu”. Aparece então o discurso piedoso e portador da verdade cientifica evidenciada por criteriosos estudos da psiquiatria e que fundamentam a retórica anti-reforma.

Cheguei a pensar que Larsson aderia ao discurso de que a tentativa de ressocialização é um risco em determinados casos. O doutor Peter Teleborian é a caricatura de alguns psiquiatras brasileiros que atacam a Lei da Reforma Psiquiátrica. Especialmente por que o sistema penal da Suécia é bem menos caótico do que o brasileiro. E a ressocialização é bem aceita.

A maneira como seu papel na trama é esclarecido ao longo do livro é constrangedora para a psiquiatria conservadora e instiga a sociedade a pensar sobre as injunções entre autoritarismo, direitos humanos, disciplinamento, tortura, tratamento e internação psiquiátrica em manicômio judiciário.

Aliás, este é, em parte, o tema da dissertação de mestrado de minha colega Loiva Leite, integrante deste coletivo, que está no prelo e promete mexer com o esqueleto de um sistema jurídico que mistura reabilitação e punição em um contexto de instituições totais, mais especificamente, o manicômio judiciário.

Enfim, por ora, recomendo a leitura dos três livros de Stieg Larsson, que deveriam fazer parte de uma decalogia, não tivesse ele morrido de ataque cardíaco logo após entregar os primeiros três originais de uma só vez à editora em 2004.

O primeiro filme, “Os homens que não amavam as mulheres”, baseado no primeiro livro, já está disponível nas locadoras. Tudo, livros e filme, imperdíveis. Tanto pelos links entre os temas da saúde mental, no Brasil e na Suécia, quanto pelo prazer de uma leitura eletrizante.