O naufrágio do eu.

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Um enorme paradoxo tem me inquietado nos últimos dias. Como sempre, a inquietação brota das mais banais experiências do dia-a-dia. As coisas vão se sucedendo em fluxo contínuo e nossa capacidade de proceder a um exame da vida que vamos vivendo é bastante limitada. No entanto, é na concretude destes instantes que a banalidade se desvanece e o fundamental parece emergir.

Num momento é o retorno de um colega que afirma, de relance, não conhecer bem o companheiro com quem convive na mesma instituição. Em outro é a forma com que uma amiga administra sua caixa de entradas de e-mails. Entre centenas de mensagens ela tenta colocar um filtro, entre objetivo e subjetivo, e vai abrindo um ou outro. Aleatoriamente, conforme sua atenção é arrebatada pelo remetente ou assunto, ela vai tentando ler. Uns poucos ela exclui. Outros ela abre. No final, a fila de e-mails parece tão grande quanto no início. Uma infinidade de urgências a lhe convocar.

Formalmente há, nos dois casos, um ator em movimento. Autônomo e racional ele impõe ordem ao caos que o circunda. O professor ignora seu colega de universidade para dar conta da incontável pauta que sua escolha pessoal reivindica ser urgente e inadiável. A amiga espera, visualizando a soma caótica das convocações, comunicados e lembretes que inundam sua caixa de e-mails, ordenar o que de fato é urgência urgentíssima.

Enganam-se os dois. Lampejos do fluxo da consciência individual não ordenarão o refluxo de relações e vínculos que convocam cada eu. Porque o eu não é tão sólido como pensamos. Ele é tão fragmentado quanto o número imenso de mensagens que se dirigem a nós. Tão estilhaçado, quanto àquela legião de anônimos que habitam o prédio em que trabalhamos.

Deixou-me um pouco desalentado a idéia de que ninguém mais pode se deter em nada e em ninguém, porque, dado que, tudo e todos, são importantes, ninguém mais foca em algo e /ou alguém por mais de alguns minutos, às vezes por meros segundos.

Comentei com uma interlocutora (que no mais das vezes é minha mentora) a tarefa inglória de tratar as demandas de uma forma em que a única profundidade é o mergulho em direção a tudo. A princípio ela objetou que esta poderia ser uma manifestação egocêntrica. De fato, a idéia de que ninguém mais consegue focar-se pode ser induzida por uma necessidade, mais intima, de ser o foco.

Mas a questão tinha determinantes mais complexos. Fatores que meus pretensos fantasmas carentes de olhar não poderiam mobilizar sozinhos. O fato de que o relativismo reinante torna o estudo mais detido e o exame mais apurado um exercício quase inviável. No mínimo, aquilo a que nos dedicamos ao longo do tempo e que consiste um roteiro minimamente coeso que possamos chamar de “a nossa vida”, parece irrelevante.

Hoje, todos são príncipes, ao estilo de Maquiavel. No entanto, ninguém se sente constrangido de exigir a moralidade alheia. Temos de julgar tudo o tempo todo. O resultado é uma soma quase infinita de opiniões redundantes. Nascidas de uma olhada rápida, no mais das vezes originada de uma noção emprestada vagamente de alguém que julgamos conhecer bem.

Para seguir com a associação de idéias (que para mim são, todas, uma só nuvem) vamos dar um salto da superficialidade das relações inter pessoais para as relações que tecem o tipo de coesão e pacto social que nos abriga. Ou seja, tentar conectar os efeitos sobre os coletivos destas tentativas dos atores individuais de ordenar as coisas.

Vejamos o caso dos pacientes que vem (quase como gado) buscar tratamento médico nas capitais. Por aqui já virou um fato cultural, que dado que a doença é um fato da vida, e que vivemos em coletividades à esfera da política é demandada uma ordenação sobre as ações de cuidado.

Dito de outra forma, dado que todos precisam desesperadamente de uma solução inovadora para um problema antes insolúvel, então se lotam coletivos, ônibus, carros oficiais e ambulâncias que se movem do interior até a capital. Todos os veículos vêm lotados de doentes graves, ou com uma suspeita de doença grave, seus parentes, caronas que conhecem algum vereador, enfim todos vêm para a cidade grande. Onde as novidades prometem a cura para as dores mais antigas da vida.

Não é apenas um efeito da crueldade da concentração de recursos públicos nos locais onde as corporações mais poderosas querem morar e ganhar seus altos salários. É muito mais. É um fato integrado aos ritos e tradições de adoecer e morrer em uma cultura marcada pelo encanto sem fim das luzes da ribalta. Algo que entrelaça os movimentos dos coronéis em seus currais eleitorais, de um modo tal, que exercer sua crueldade política parece uma exigência dos próprios oprimidos.

Agora desviemos o olhar um pouco. Veremos outro pacto social, outro elemento de nossa conexão, da qualidade de nossos vínculos, por assim dizer. Alguns pensam que o desnível salarial e a desigualdade de condições de trabalho no setor da saúde são efeitos perversos das naturais disputas econômicas entre instituições de saúde. Elas buscam o reembolso de serviços prestados nos gordos cofres públicos ou nas carteiras dos seguros de saúde privado que são, também, financiadas pelo setor público. Certamente é.

Mas em grande medida é uma iniqüidade legitimada por uma esperança egoísta e irreal. Imagina-se que se as coisas permanecerem assim, um dia, todos poderão ter a sua parte no banquete. Como disse um colega: – Um dia eu passo em um concurso ou alguém me nomeia para um cargo no hospital A, ou no hospital B.

Dessa forma, cerca de 100 mil trabalhadores de nível médio suportam uma média salarial de menos de 900 reais, porque sonham ganhar um inicial de R$ 2.500,00 em uma das cerca de cinco mil vagas ocupadas nos hospitais que tem sua folha de pagamento subsidiada pelo Ministério da Saúde.

É evidente que estas vagas bem remuneradas são pagas com o custo da saúde dos trabalhadores que ao ganharem um pouco melhor, vendem sua segurança e expectativa de vida. Evidentemente que sai caro para os usuários dos sistemas privado e público de saúde, igualmente.

Os usuários têm sua segurança e dignidade humana rifada entre um conjunto de instituições financiadas ao sabor de conveniências de mercado, do patrimonialismo e do tráfico de influência. A felicidade é privatizada e o sofrimento solidariamente partilhado. No jogo onde muitos perdem e poucos ganham a esperança é sempre renovada, já que só a morte é certa.

O eu e seus determinantes ficam mais bem avaliáveis neste tipo de entrelaçamento dos fatos. Nesta articulação de eventos e ideias inusitadas os fatos evidentes, mas subjacentes, podem finalmente emergir. Parece que tememos o inaudito da associação de ideias pelo retrato monstruoso que surja da costura das múltiplas visadas. Mas será que a nossa concepção de monstruosidade deve calar o que vemos cotidianamente em uma espécie de esquartejamento confortável do real?

Em plena era do prestígio, da celebridade, da marca pessoal e do nome, construído em torno de uma identidade que nos arranque do anonimato, o perigo não é não ser lembrado. Tudo o que de fato nos ameaça, tudo o que é relevante é a soma das complexidades que não podemos tratar sozinhos. Nesta inundação de redundâncias o “eu” é dissolvido na ameaça que é real, justamente porque não podemos ser mais que anônimos. O dano é solidário.

Nossos vínculos mais sólidos não são de apresso ou prestígio. Nossos vínculos são de riscos. Lançamo-nos como um solitário motorista – alguém que dirige – no coletivo de carros que impedem o fluxo nas ruas. Nosso desconforto decorre de que dirigir é impossível, quando todos desejam o mesmo. O dia ideal é o domingo, cada vez mais raro, em que dizemos que a rua é nossa.

Vamos ao hospital para tratar uma urgência que decorre do pacote de prazer que adquirimos no mercado de consumo. Acreditamos na propaganda que diz que o modelo “standard” é melhor que o modelo “comum”. Sonhamos que ele é o modelo situado a meio caminho exclusivo e “VIP” que nos aguarda, sempre adiante.

O paradoxo é que tudo de importante que nos atingirá no século XXI atingirá o caráter comum e aleatório de nossas existências. Nenhuma autonomia ou centralidade de nossas almas pessoais nos protegerá. Furacões, maremotos, migrações em massa, descontrole climático, de um lado. Convulsões sociais, epidemias virais e comportamentais como o HIV ou o uso de drogas, falência do Estado de bem-estar social, colapso econômico, terrorismo, armas de destruição em massa, de outro. Tudo seguirá a lógica multicausal que guia o fluxo dos enxames de abelhas, gafanhotos e borboletas.

Curiosamente em uma rede de afetos plenos como a que tecemos no esforço de humanizar o SUS nos põe de frente ao paradoxo que me referia no início. Vemos a construção das identidades como marcas, dos nomes pessoais como grifes em um mercado em que idéias solidificam nomes em função de filiações teóricas e ideológicas.

No lado oposto da unificação do mercado de bens simbólicos, está a legitimidade de sermos coletivamente. A volatilidade e liquidez do mercado de bens simbólicos unificados é a capacidade com que se convertem todos os bens simbólicos em dinheiro. Tudo vale o seu peso em moeda, tudo deve circular, inclusive as ideias, para virarem prestígio, marcas e de novo, dinheiro.

O futuro dos humanos depende de que possamos criar alternativas de afirmação da vida com a mesma agilidade que criamos os riscos coletivos em nome da miragem do prestígio e da potência do indivíduo. Ainda que a subjetivação seja desejável ela só será um devir viável se aceitarmos o mistério que nos circunda. O mistério no qual o eu é apenas a fina capa que recobre a fluidez insondável do abismo.