Trilogia da crise. Parte II

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Segue a segunda parte da trilogia, ilustrada com as fotos dos protestos em Londres. Os links com a economia brasileira, as relações de gênero, a PNH e o SUS estão na ordem do dia em meio a crise mundial causada pelo capital especulativo. Uma boa leitura.

Paul Hackett/Reuters
 
Segundo Touraine é preciso diferenciar as várias formas de sociedades capitalistas do sistema capitalista. Desta forma, Rússia, de Putin, o Estado partido da China comunista e mesmo a Venezuela de Chaves são capitalistas. No entanto, todas estas sociedades são diferentes entre si e diferentes, todas, da sociedade brasileira. Ainda que tenhamos muito em comum com a cultura ocidental, com a Europa e EUA, e diferenças culturais com o oriente partilhamos um mesmo modo de produção. Lemos algo semelhante nos escritos de John Gray, um conservador realista, que também defende que em cada país há uma cultura incidindo sobre o modo de produção capitalista e diversas formas de mercado com mais ou menos liberalismo econômico e social.

Assim é preciso ter claro em que tipo de sociedade capitalista a crise nos atinge. Na obra de Touraine vemos a sociedade industrial, onde a transformação dos recursos naturais é o princípio da vida social. A disputa em torno da distribuição dos recursos é a característica fundamental deste modelo de capitalismo. Os atores sociais se ordenam no seio das classes sociais que disputam os recursos materiais e o lucro da produção industrial.

Nas sociedades pós-industriais o elemento central é a comunicação. É uma forma mais adiantada de sociedade industrial onde o surgimento de bens intangíveis toma espaço junto à produção de bens de infraestrutura e consumo. Nela conhecemos a abundancia de bens e a diversificação das mercadorias. Concomitantemente, se observa uma intensa diferenciação de interesses no âmbito da classe operária. Longe da polarização entre capital e trabalho o que vemos na sociedade pós-industrial é a diversidade.

O estado de bem estar social está ferido por uma perda de sua legitimidade. Ele não é suficiente para conter o avanço da globalização financeira e especulativa. Uma parte dos assalariados vive abrigada pela proteção dos direitos sociais, ao passo que uma grande parcela dos trabalhadores se vê excluída pela terceirização e precarização dos vínculos de trabalho. Uma situação que Manuel Castels identifica como camadas sociais desassociadas.

É interessante notar que esse fenômeno da fragmentação das condições de trabalho tem ocorrido progressivamente no Brasil. Especialmente no trabalho em saúde. Excluindo parte da equipe multidisciplinar do regime de proteção social podemos esperar severas consequências sobre a qualidade da atenção. Isto fere de morte o princípio da equidade presente na instituição constitucional do SUS. Se o Trabalho em Saúde não é respeitado em termos de equidade na remuneração e condições adequadas para o exercício da atenção, como sermos equânimes no tratamento para com os usuários do SUS?

Outro exemplo deste tipo de avanço ambíguo e incerto dentro das relações sociais clássicas é o das relações de gênero. As mulheres nesse contexto ascendem de fato a uma condição de maior autonomia e independência. Mas a diversificação de exigências no mercado de trabalho instaura um embate que parece jamais ter termino e onde as mulheres permanecem em condição de desigualdade em relação aos homens. Mesmo quando os homens assumem conjuntamente as responsabilidades de educar e cuidar dos filhos, coisa talvez rara, a carga sobre as mulheres, em termos de diferenças de salário, permanecem.

E assim com os demais grupos e minorias que disputam espaço na arena política e social. São tolerados de forma hostil e beligerante e sempre com a condição de não ameaçarem a maioria tradicional. Disso decorrem as reações homofóbicas, o fundamentalismo religioso, entre outros fenômenos de resistência a emancipação dos excluídos.

O projeto do livro de Touraine é compreender como o sistema se coloca, a cada passo, mais acima e independente dos atores sociais. No momento em que a crise determina o triunfo do capitalismo especulativo existe a necessidade de se opor ao sistema um princípio de enfrentamento que seja suficientemente universal. Ou seja, para superar a diversificação dos grupos de interesse que estão em desvantagem em relação ao sistema que agora ignora os atores sociais.

Este princípio universal tem uma ancestralidade como patrimônio de ferramentas e capacidades inerentes ao universo feminino: a moral, a ética e a estética do cuidado. Porém esta espécie de “hegemonia” feminina em relação à sensibilidade e a subjetividade são muito mais relacionadas à cultura. E a cultura que tem uma ascendência mais estável frente à maleabilidade inerente a esfera do social.

O trabalho em saúde comunga com essa genealogia ancestral tão cara a construção da humanidade em sua dimensão coletiva e subjetiva desde as tribos humanas do paleolítico. A convocação que Touraine dirige a “moral” e aos direitos humanos tem um papel que já se mostrou eficaz ao longo da história humana: vínculo que gera afeto, solidariedade e fraternidade.

Em lugar do elogio ao trabalho e ao operariado, que é remetido ao campo e a esfera dos atores sociais, colocamos o princípio universal do sujeito. O sujeito humano que supera o individualismo liberal só o faz na medida em que faz a si próprio o portador de direitos universais, segundo Touraine. O declínio da sociedade masculina em “Após a crise” é descrito como a capacidade de opor ao poder da objetividade “masculina” a potência da subjetivação “feminina”. Velha conhecida das mulheres e dos homens que sabem cuidar e, portanto do nosso melhor caráter, enquanto trabalhadores da saúde.

Uma nova sociedade e a decomposição da vida social: Uma coisa e a outra estão dadas. A primeira como um desafio. A segunda como constatação. Como iremos sair da crise e se sairemos bem ou mal, embora seja a grande questão dirigida aos economistas, nos instiga igualmente a pensar com o autor.

De certa forma, esta questão remete ao enclausuramento no individualismo. Touraine lembra que: “Numa crise, como num furacão, as intenções e os propósitos das pessoas implicadas pouco contam. O mesmo não se pode ser dito em relação ao processo de criação de uma nova sociedade.” (página 59). Então, aos sociólogos importa entender os mecanismos que levam a crise, o que ficará em ruína e o que é possível fazer a partir das consequências.

As leis econômicas (que pretendiam se alçar acima da sociedade como “a lei”) são o primeiro edifício simbólico que cai junto com as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. A lei única do mercado amparava o discurso supra ideológico e "objetivo", frente a qual os atores sociais deviam se alinhar. A “verdade cientifica” da economia era o mantra entoado pelos operadores do mercado financeiro que agora surgem como responsáveis pela crise. Motivados por nada menos que interesses pessoais. O cálculo “racional” não poderia regular o sistema no sentido da promoção do bem comum. Touraine afirma que:

“somente o sujeito consciente de seus direitos pode opor-se a toda poderosa globalização
e ao neoliberalismo, que submeteu a economia e os seres humanos ao mercado esta instância supostamente mais racional do que as decisões emanando das pessoas e das instituições.” (p. 88)

O mundo da economia cada vez mais globalizado e desligado das leis e normas, atrelado ao crime organizado, se apartou do mundo social, onde naufragam instituições, sindicatos e ONGs em um oceano de ineficácia real. Dele podemos vir a habitar um devir sombrio e fundamentalista. Ou construir outro futuro possível.

Na fabricação de valores o lugar da subjetivação é central. O tema do sujeito, segundo Touraine, se forma fora do campo social, aqui encontramos os princípios metassociais. A economia deve dar lugar à defesa da vida no topo da agenda política. O cuidado com os vínculos de risco entre os seres vivos, suas formas de civilização e o ambiente planetário vem antes do mero jogo de interesses dos atores sociais. E entendo que é nesse sentido que Touraine afirma que já estamos numa situação pós-social. Mas antes é preciso entender que já estamos além da luta de classes. Muito lucidamente o autor percebe que:

“Os astecas não tinham consciência de que os espanhóis, tão bem recebidos por ele, iriam massacrá-los, mas nossas informações nos permitem hoje, ao contrário, prever as catástrofes às quais conduz o triunfo dos especuladores.”

A ideia de antecipação, baseada na experiência é por demais conhecida e utilizada no cotidiano do trabalho em saúde. Estamos familiarizados com o princípio de defesa da vida que é universal e precede a disputa dos grupos de interesses. Mesmo agora quando o SUS se consolida é na forma alvissareira de Política de Humanização e o retrocesso se ameaça justamente como submissão às leis de mercado na forma de mercantilização da saúde.

Volto ao tema de Touraine no próximo texto. Nele começo a cotejar estes temas com o pensamento mais recente de Zugmunt Bauman, expressado na forma das “44 Cartas do Mundo Líquido Moderno” editado em 2010 na França e neste ano no Brasil pela Zahar. Fechando a trilogia vai também a indicação do Romance “6 mil em espécie”.