Uma experiência de trabalho com a infância num hospital público em São Paulo

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Uma experiência na Clínica de Psiquiatria e Psicologia da Infância e Adolescência do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo

 

 

“As crianças são seres metafísicos”, disse Gilles Deleuze, a propósito das explorações que fazem para entender o mundo que as cerca. Criam suas próprias “teorias” para apreender as maquinações do ser e do tempo em que vivem.

Nós, profissionais de saúde, na maioria das vezes, ao invés de segui-las em suas investigações, fazemos interferências classificatórias, diagnosticando e medindo suas “capacidades”. Apostamos em um incremento de seus desempenhos de todas as espécies, numa busca frenética de estimulantes ou calmantes de seus comportamentos. Que mundo é esse?

 

O Hospital do Servidor Público Municipal é uma autarquia da prefeitura de São Paulo que atende seus funcionários e dependentes. Trata-se de um hospital geral, com diversas especialidades, localizado na região central da cidade, hospital este que, pela especificidade de sua clientela, não se restringe ao seu próprio território. Esta condição produz um funcionamento não regionalizado, o que pode trazer benefícios e dificuldades. Atendemos pessoas de todas as áreas da cidade e perdemos com isso a possibilidade de parcerias mais próximas com outros equipamentos de cuidado e assistência à infância. Por outro lado, abre-se um campo de contato com uma grande diversidade de modos de vida.

O ingresso na clínica é feito por intermédio do acolhimento das crianças, adolescentes e suas famílias.

As queixas escolares formam uma parte significativa dos pedidos e vêm aumentando a partir do imperativo social do processo de medicalização pelo qual passa a vida hoje. Processo que não se restringe à forma como a escola trata as questões das dificuldades de aprendizagem, mas que reverbera por todas as manifestações comportamentais de crianças, adolescentes e adultos. O que dizer do aumento galopante de “doentes mentais”? Segundo um artigo recente da revista “Época”, há dois milhões de autistas no Brasil, o que equivaleria a uma criança em vinte e cinco. Proporção de epidemia. Tais rotulações, entretanto, não resistem a uma análise mais rigorosa e crítica dos critérios pelos quais foram estabelecidas. Tarefa epistemológica, mas também — e principalmente — tarefa clínico-política. Portanto deve fazer parte do trabalho dos profissionais que se responsabilizam pela produção de saúde em seus equipamentos.

Como proceder então quando nos deparamos com a necessidade de cuidar e, ao mesmo tempo com a injunção social de enquadrar, delimitar e gerir os comportamentos? Diagnosticá-los como sintomas de novas “doenças” pode se mostrar um cuidado apressado que leva, paradoxalmente, ao descuido e ao destrato das questões trazidas por quem nos procura.

Tomando essa perspectiva como um norteador do modo de abordagem montado em nosso serviço, trabalhamos com os dispositivos grupais a partir do que detectamos no pronto-atendimento como um “problema” a ser construído conjuntamente. Problematizar a origem e o modo como chega cada pedido é parte fundamental do trabalho conjunto de esclarecimento e intervenção sobre a realidade que se nos apresenta. Iniciamos então com o grupo familiar uma espécie de mapeamento daquilo que vem como “queixa”.

Várias vertentes para pensar:
De onde parte o encaminhamento? De que modo chega até nós? Que tipo de formulação é trazida?

Nosso serviço recebe encaminhamentos de toda espécie por parte das escolas, outros profissionais de saúde — como pediatras, psiquiatras, neurologistas — e de outras áreas de atuação sobre a infância. Muitas pessoas também nos procuram na forma da chamada “busca espontânea”, premidas por preocupações próprias ou desencadeadas pelos apelos da mídia em torno das vivências contemporâneas. O autodiagnóstico, por exemplo, virou uma prática frequente na contra-mão da produção de uma circulação de conhecimentos que deveria promover autonomia no lugar de submetimento.

O modo como se apresenta a questão traz, na maioria das vezes, a marca de um olhar medicalizante: um problema, um diagnóstico, uma doença, um modo de ser considerado inaceitável.

O que e como fazer?

Construção conjunta: pensamos que a análise pode e deve ser feita junto com as crianças, adolescentes e adultos cuidadores. Muitas vezes a simples desmontagem da narrativa que define tais realidades como doenças é acionada já neste início de avaliação, reconfigurando a questão inicial. Saídas potentes são buscadas para os supostos estados sintomáticos em parceria com os pais, professores e outros.

Este “modo de fazer” vai se configurando por uma espécie de devolução do “produto” — sintomas, estados — ao seu “processo de produção”, contexto mais amplo em que se produziu aquela forma. Clínica ampliada, no sentido de se abrir o entendimento e a intervenção.

Escutar as crianças:

A maioria das crianças e jovens são os principais interessados em compreender os motivos dos seus encaminhamentos aos especialistas. E, na maior parte das vezes, os últimos a serem ouvidos. Embora cheguem por iniciativa dos adultos, na condição de objetos passivos de observações e etiquetas diagnósticas, sempre terão a sua versão sobre o que lhes acontece e só não se manifestam se mantivermos com eles a mesma relação destes adultos.

Renée Loureau e Ferenczi, cada um à sua maneira, nos mostraram como se cria uma relação de “hipercomunicação” nesta relação pais/ filhos, educadores/ crianças, com mensagens ou subtextos que os codificam ou submetem ao pensamento do adulto. Este modo de falar sobre a criança carrega muitos outros sentidos nos quais ela pode ficar capturada. “Ele é agitado, hiperativo, fala mais que a boca!”. Ou “Ela é desligada, não aprende, não escuta, não pára!” Outro é “opositor”, desrespeitador das regras, “diz tudo o que pensa”. A criança fica sem voz e sem lugar. Também fica sem história, na medida em que se naturalizam as queixas em frases como “sempre foi assim!” A escuta das palavras da criança vai começando a retirá-la desta condição.

Depois do pronto-atendimento com o grupo família, se não houver alta, pais e crianças passarão por um dispositivo grupal de 8 encontros semanais, com duração em torno de uma hora e meia. Montamos grupos de crianças com um profissional e grupo de pais com outro. “Quartos separados” foi a expressão brincalhona, surgida de um ato falho de uma das psicólogas, tornando-se parte da cultura da equipe. O sentido desta separação é fundamental para garantir a palavra da criança em outro contexto, evitando a “confusão de línguas” já referida.

O dispositivo grupal também é ferramenta estratégica de trabalho contra o isolamento a que ficam submetidas as crianças e famílias, promovendo o compartilhamento do sofrimento e da construção de saídas a serem experimentadas. Estar com outros pais que experimentam maneiras diferentes de viver os conflitos existenciais funciona como uma potencialização das trocas possíveis entre eles. O mesmo vale para o grupo de crianças.

A prática de aplicação de testes foi sendo gradativamente substituída pela interação lúdica, produção de desenhos e pela conversa como meio apropriado e respeitoso de acesso ao mundo da infância. Notamos que a passividade sempre se intensificava na situação de testagem, chegando a produzir paralisações. Um exemplo extremo de “hipercomunicação” é atribuir estas paralisações às próprias crianças, como se se tratasse de um atributo, um funcionamento psíquico ou, na pior das hipóteses, um sintoma do sujeito em questão.

Diagnósticos na saúde mental

Pensamos que a figura do diagnóstico em saúde mental requer uma abordagem à parte pelos efeitos de produção subjetiva que carrega. É importante considerar a possibilidade de trabalhar sem recorrer aos diagnósticos padronizados das práticas psiquiátricas. Ideal, norma, padrão, estatísticas constituem os pilares que sustentam a ideia de diagnosticar. E os “tipos”, formas e fôrmas são os produtos subjetivos que podem aprisionar as subjetividades, plasmando modos de ser.
Acaba de ser lançado um trabalho rigoroso sobre os efeitos de subjetivação do DSM-IV e V, intitulado “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea”, de Alfredo Jerusalinski e Sílvia Fendrik (ed. Via Lettera, 2011), em que os autores apresentam sua experiência com as novas categorias diagnósticas psiquiátricas. Relatando o pedido dos psiquiatras americanos, responsáveis pela revisão e correção do DSM-IV, aos ingleses para que fizessem recomendações a partir da sua aplicação, estes se mostram enfáticos em afirmar que foram “produzidas ao menos três epidemias falsas: o Transtorno Bipolar, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e o Autismo Infantil” (introdução, p. 10).
Ora, se estamos exatamente em um campo marcado pela dimensão da singularidade, em que todos os indivíduos são radicalmente únicos, não há sentido em se trabalhar com classificações e padronizações de qualquer tipo. Este campo é pautado pela sutileza das observações, pelos detalhes absolutamente decisivos no entendimento, algo que não se leva em conta nas tristes padronizações que constituem a base dos testes psicológicos e das escalas psiquiátricas. Vemos cotidianamente no funcionamento grupal crianças que, se testadas pelos instrumentos tradicionais, obteriam escores baixos, mas que revelam toda a sua vivacidade e inteligência em outros contextos. Sabemos que as classificações e testes desconsideram fatores culturais e modos de vida diferentes daqueles projetados por um ideal perverso de norma que deve valer para todos.
Recomendamos também como potente ferramenta de trabalho a leitura do artigo “Inteligência Abstraída, Crianças Silenciadas: As Avaliações de Inteligência”, de Maria Aparecida Moisés e Cecília Collares, membros do Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade.

E, por fim, arrematamos o que foi processado nos respectivos grupos de crianças e de pais realizando um encontro coletivo dos dois. Nossa experiência mostra que o conceito de encontro, criado por Espinosa, é um vetor importante na promoção de uma atmosfera de potência terapêutica de grupos. A vivência singular de cada agrupamento constrói uma pequena história coletiva e de implicação com o outro que potencializa afetos e perceptos sobre a vida. São zonas de experimentação de um comum e, ao mesmo tempo, de encontro com diferenças que podem ser acolhidas e incorporadas.

As diferenças nos modos de ser criança e ser jovem colocam em xeque o mundo que encontram e que foi construído basicamente pelos adultos. É preciso, portanto, que nos agenciemos com tecnologias “leves” de abordagem da vida na infância para dar passagem às forças de criação. As novas figuras psicopatológicas e seus tratamentos correspondentes funcionam hoje como as antigas camisas- de-força de triste memória.

Iza Sardenberg