Os Extremos que Esvaziam o Debate

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"Power Struggle" (Patsy MacArthur)

“Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado . Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro. Mas cada um via uma coisa diferente, e cada um portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade”. (Fernando Pessoa)

Tanto já foi dito nas últimas semanas sobre a polêmica em torno do “Mais Médicos” que temo não colaborar em alguma coisa. Alias, recomendo a leitura do texto de Dani Matielo publicado na RHS (acesse aqui). Sinto-me contemplado por ele, tanto pela clareza quanto pela luz que nos mostra um caminho muito além do histerismo que temos visto, diga-se de passagem, dos dois lados nessa questão.

Farei um recorte simples que parece evidenciar isso que chamo de histerismo, que acaba tornando o debate absolutamente rasteiro e sem saída. Antes, quero compartilhar da minha alegria. Os tempos não são sombrios. As feridas desse país estão expostas. E agora se discute no dia a dia as formas de trata-las. Cidades que nunca ouvimos falar milagrosamente aparecem nos mapas, são matérias de horário nobre na TV. Não estamos mais fingindo que elas não existem. Os números das estatísticas estão incomodando porque eles ganharam rostos, dores, medos e pasmem, até sorrisos. Não dá mais para esconder o sofrimento atrás dos dados epidemiológicos. O SUS tornou-se ponto central da discussão política!

E assim, parece que temos todo mundo, com e sem jaleco, saindo nas ruas para expressar seus pontos de vista em relação ao SUS. Isso me conforta muito e me faz acreditar que podemos sair desse impasse. Mas para isso, é necessário abandonar os “extremos”. E aqui não falo necessariamente no sentido que essa expressão tem na política. Ser extremo pode ser a solução para um problema, pode não mudar nada ou simplesmente pode piorar as coisas. Para mim o extremo da situação retrata na verdade um comportamento emocional que intenta retirar do outro todo e qualquer sentido lógico, a semelhança dos amigos de Fernando Pessoa que coloco no início do texto. Os extremos dos lados em conflito afirmam o monopólio da verdade absoluta e se "monstrificam" mutuamente.

Tomemos um exemplo. Na chegada dos médicos cubanos a Fortaleza ocorreu uma manifestação do sindicato dos médicos, gravada em vídeo sob vários ângulos e fotografada exaustivamente. Nela os médicos cubanos foram hostilizados e, no limite, chamados de escravos e até de adjetivações de cunho racista. No entanto, nem todos que estavam ali se comportaram dessa maneira. Além disso, o que ocorreu em Fortaleza, da forma como ocorreu, é lamentável sob muitos aspectos, mas, parece-me óbvio, que  não expressa que todos os médicos do Ceará e do Brasil sejam “agressivos” ou “racistas”.

Pois no dia seguinte circulavam montagens e textos na internet que associavam a manifestação a um evento ocorrido nos Estados Unidos quando na Carolina do Sul o governo estadual foi obrigado, sob ordem judicial, a receber em escolas apenas para brancos, a presença de estudantes negros. A pioneira foi uma estudante negra chamada Dorothy Counts. O objetivo das montagens era afirmar que existia uma semelhança absoluta entre a reação racista nos EUA de 1957 e a manifestação do sindicato dos médicos de Fortaleza em 2013. A conclusão decorrente é então afirmar que TODOS os profissionais médicos fazem parte de uma elite branca conservadora a esbravejar contra negros que tiveram o atrevimento de se tornarem médicos. Bem, qualquer inteligência mediana irá perceber que concordar com essa afirmativa é chafurdar no terreno dos estereótipos. Eu não sou médico e me senti ofendido por este tipo de militância rasteira. A maioria dos médicos deve ter tomado isso como uma cusparada no rosto!

Agora vamos ao outro extremo. Na semana que passou reverberou intensamente o artigo de Luiz Felipe Pondé, intitulado “O fascismo do PT contra os médicos” (acesse a íntegra do artigo aqui). Pondé quer nos convencer de uma conspiração do Partido dos Trabalhadores para difamar os médicos brasileiros. Em linhas gerais defende as argumentações das entidades médicas mas, ao mesmo tempo, afirma que as ações do governo no campo da saúde visam apenas objetivos eleitorais sendo o comportamento do governo rotulado como “fascista”. Para dar vida a sua metáfora sobre o fascismo, Pondé afirma: “Assim como os judeus foram o bode expiatório dos nazistas, os médicos brasileiros estão sendo oferecidos como causa do sofrimento da população”. A tese central é de que o governo federal quer se eximir de suas responsabilidades de um SUS completamente precarizado culpabilizando os médicos por isso. Agora o círculo se fecha. Pondé afirma então que os médicos se tornaram “os judeus do PT”. Não é preciso ser gênio para imaginar a presidenta Dilma como Hitler, o ministro Padilha como Goebbels e os profissionais médicos sendo levados a campos de trabalho forçados nas unidades básicas de saúde. Novamente, trabalho intelectual que chafurda no mundo das estereotipias que parece, a semelhança do outro extremo, ter sido feito com o único objetivo de se alimentar o ódio!

Para entrar de maneira séria nesse debate não poderemos nos prender a imagem de médicos que conscientemente praticam racismo contra médicos negros muito menos à imagem de um governo que se inspira no nazismo para transformar médicos em judeus escravos. Quem aposta em alguma dessas imagens na verdade não quer propor coisa alguma a não ser uma briga de facas onde a única regra é não ter regra alguma para se matar o oponente. A saúde merece muito mais do que isso. É chegado o momento de se questionar o centralismo e o autoritarismo como as políticas públicas no Brasil são impostas. Não se pode mais admitir que programas da complexidade que possui o “Mais Médicos” não possa ser mais amplamente discutido antes de sua efetivação.  É também chegado o momento das entidades médicas serem de fato PROPOSITIVAS e não se restringirem nas razões para não se ir aos rincões, mas que de fato não sinalizam como começar a resolver os problemas AGORA, mesmo que as condições de trabalho e atendimento ainda estejam precárias nesses lugares. O trabalho médico é tão importante que mesmo que as condições ainda não sejam ideais, precisamos de alguém para curar coisas simples como diarreia e desnutrição, que ainda matam por esse país, seja nas periferias das capitais, seja nos rincões!