Pela manhã eu assisti Bolsonaro conversando com seus apoiadores em Brasília. Cercado de seguranças, afastado dos inconvenientes repórteres, ele batia papo com apoiadores. Alguns, vindos de alguma cidade do interior do Brasil, alternavam entre elogios e perguntas sobre a razão de ainda não terem recebido o auxílio emergencial de R$ 600,00 e a certeza de que Deus e o povo estão com ele.

Próximo do final da conversa um apoiador mais “reflexivo” indagou porque o presidente não segue o conselho de Olavo de Carvalho. Ele quer que Jair Bolsonaro entre com processo judicial contra todos que o chamam de genocida. A resposta nos leva a entender melhor o tipo de pessoa que Bolsonaro tem sido ao longo de sua vida. Ele diz que não ganha nenhum processo quando é injuriado, mas perde todos os que sofre por injuriar os outros. Na verdade na maioria das vezes ele apenas se desculpa, mas esse não é o ponto.

O principal é que ele diz “se é liberdade de expressão, então tem que ser para todos, tá ok?”. Ou seja, a conexão que ele faz entre suas falas de que o regime militar falhou porque não matou 30 mil pessoas e as acusações que vem sofrendo pela omissão em promover políticas públicas efetivas de enfrentamento a pandemia de Covid-19 é a da mera disputa ideológica. Para ele não se trata de um crime político, de uma política de deixar morrer, mas sim de uma disputa por narrativas.

Dado que ele está lutando desde sempre contra a ameaça comunista e provavelmente contraiu e ficou imune a infecção por coronavírus, isso é a realidade absoluta. Tudo mais é parte do jogo de versões entre inimigos em guerra. Eles me chamam de genocida e eu digo que a minha filha é fruto de uma fraquejada. É tudo igual. Tudo é só retórica. Como se Marielle Franco tivesse sido assassinada com pontos de exclamação.

Precisei, então, assistir novamente “A Queda” para entender como o pensamento nazifascista se (re)infiltrou na política brasileira. Bruno Ganz interpreta com maestria um Hitler alucinado e decadente nas últimas horas do reich nazista. O espetáculo da derrocada do regime é retratado com extremo realismo através do olhar da secretária do Fuher.

Entretanto, não é o próprio Hitler que nos fornece o tipo ideal de Bolsonaro e do bolsonarismo. Afinal, o Fuher faz as conexões e segue seu destino na coerência e consciência do desfecho de sua trajetória. No caso de Bolsonaro a história se repete de modo farsesco, embora possivelmente não menos trágico.

Estamos diante de um rompante nazifascista de tipo mais afeito ao individualismo neoliberal ou anarco capitalista. No nosso caso a personagem símbolo é a secretaria pessoal de Hitler. Não a atriz, mas a senhora que fala no início e no final do filme. Ela conta como foi, contrariando conselhos de amigos e familiares, se candidatar a o emprego no alto comando nazista dois anos antes do suicídio de Hitler em seu bunker. E no final, antes dos créditos, relata como viveu durante muitos anos chocada com o que veio a saber depois da guerra, sobre os terríveis crimes de genocídio nos campos de extermínio.

Mas ela manteve a sensação de inocência. Somente muito tempo depois, quando percebeu que as pessoas mortas, as jovens judias, ciganas, oposicionistas e comunistas, eram suas contemporâneas, pessoas da geração dela, foi que a sensação de culpa lhe veio a consciência. De alguma forma ela entendeu que poderia saber. Que escolheu não fazer a conexão, não se dar conta do que era o regime ao qual serviu e pelo qual quase morreu.

Aquela bela jovem é na verdade o melhor guia para o coração de Bolsonaro e de muitos de seus seguidores. Alguns apenas acham que o mundo é simples e que bem e mal são sinônimos diretos dos termos direita e esquerda, respectivamente. Para outros, o número de pessoas de esquerda aumenta na mesma proporção em que descobrem mais brasileiros que não apóiam Bolsonaro. Desde um centésimo de milímetro antes da extrema direita, tudo é comunismo para os bolsonaristas. Esses mantém uma fé cega em seu “Messias”. Evidentemente há aqueles bolsonaristas que vêem o mundo no mesmo nível de Hitler e de seus asseclas.

Possivelmente eles todos não irão ao extremo, acreditamos, de cometerem suicídio num mundo em que o “mal” triunfe. O que para eles  equivale a volta da esquerda ao governo. Queremos acreditar que, mesmo os mais fanáticos, não chegarão ao extremo de matar os filhos antes do suicídio, como fizeram Joseph e Magda Goebbels. Eles assassinaram todos os seis filhos para que eles não tivessem que suportar a existência num mundo sem o nacional socialismo.

O fato é que Bolsonaro aparenta não fazer a conexão entre as mortes pela covid-19, seu comportamento pessoal, seus discursos e suas “políticas”. Ele considera a acusação de genocídio equivalente aos golpes de retórica virulenta que usava no Congresso Federal quando era um deputado do “baixo clero”. Para ele tudo é apenas discurso, tudo é uma guerra de idéias sobre o bem e o mal.

Desde 2013 tenho me perguntado quando a retórica da violência degeneraria em sangue nas ruas. Fui um ingênuo. Não fiz a conexão.

A retórica violenta existe desde o tempo em que se discutia se negros e indígenas possuíam alma, ainda no início da colonização do Brasil. E o sangue corre em nosso chão desde aquela chegada ao nosso litoral.

Esse é o momento histórico em que uns insistem em não ver a conexão e muitos outros não suportam mais fechar os olhos, desviar o olhar ou dar de ombros.

Vidas negras importam, vidas pobres importam, a vida importa. Milhares morreram, estão morrendo e vão morrer. A civilização e a humanidade estarão ameaçadas se não pudermos fazer a conexão.

Nossas instituições são máquinas de exclusão, de extermínio e negação da vida. Nunca isso foi tão evidente.

Ainda que leve a mais conflito e dor, a conexão deve ser feita. Porque não é possível ou imaginável que possamos ser mais violentos, em atos e omissões, do que já temos sido.