Autonomia Até o Fim: A Resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina

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Vamos Imaginar a seguinte situação. É seu aniversário de 75 anos. Você está cercado das pessoas que ama. Organizaram uma festa muito bonita. Nela você vê um pouco o resumo de sua vida projetado na parede naqueles “slideshares” com direito a música de trilha de cinema que arranca lágrima das pessoas.

E você também chora. As fotos de infância evocam a lembrança dos pais e avós já há muito levados pela morte. Vislumbra nas fotos da escola as recordações dos primeiros amores. Viaja no tempo numa época cheia de utopias onde você se achava capaz de mudar o mundo inteiro. Ai vem as fotos dos filhos quando crianças, todos muito amados e diferentes, alguns secretamente mais queridos do que outros.
Isso tudo transforma seu peito num torvelinho de emoções. O velho coração meio que perde o ritmo da dança, ora bate apressado, ora mais lento. Agradecido, você faz um esperado discurso que acaba traduzindo as imagens que acabou de ver em palavras. A música ainda toca de fundo e no fundo das almas.

E por falar tanto da vida e meio que tomado por uma sensação de que os projetos foram realizados a contento e que faltam poucas páginas para serem lidas, você toma coragem e fala da morte. Rostos assustados se entreolham. Mas que mau gosto, pensa alguns. Nós aqui prestando essa homenagem e ele falando de morte.

Mas será que não perceberam? O aniversário é um momento muito propício para se pensar na morte. A música do “parabéns” sinaliza com clareza isso quando desejamos muitos anos de vida. Ao desejar muitos anos, lembramos que um dia a vida acaba. E você se sente tão feliz que falar em morte não é algo necessariamente ruim. Diz que sentia a vida tão completa que poderia morrer naquela hora e tudo estaria bem. Fala do carinho das pessoas, do amor que recebeu e o habilitou a ser alguém que também podia oferecer amor.  Fala do quanto foi feliz no trabalho e do quanto se esmerou para que as pessoas que ama pudessem ser aparelhadas para serem autônomas e felizes. A vida poderia terminar ali e você morreria em paz.

Mas um fantasma o assombrava. A ideia de que as pessoas, sôfregas por mantê-lo vivo, insistissem em fazer TUDO o que fosse necessário para que ainda não fosse embora. E se no meio desse “tudo” acontecesse  a UTI, acontecesse o abandono, o vazio das possibilidades de escolha, o risco de sentir dores intermitentes que invadissem o corpo e alma, de se sentir uma coisa, um monte de carne apalpado e remexido.

NÃO! Você sempre romantizara a morte como um momento de paz, em casa, ao lado de quem você ama com as coisas que você gosta e a música – sua eterna companheira – tocando os últimos acordes aqui na terra para abrir as portas do sabe se lá aonde. E com os olhos cheios de lágrimas você pede: “Quando for a hora, me deixem ir embora!”. Ainda era viva na memória o quanto o seu pai sofrera depois de um acidente vascular cerebral onde perdera a fala mas não o brilho nos olhos que gritavam em desespero pedindo pela liberdade, pelo fim do tubo na garganta, pela fuga daquele lugar onde a noite nunca vinha.

Uma hora depois, os presságios se realizaram. Em meio a cantoria, uma dor dilacerante no peito acompanhada por um desmaio. Correria, gritos, desespero. As pessoas o levam para o hospital mais próximo. A equipe de saúde o recebe prosseguindo a correria. Massagens… reanimação. E você volta surpreso vendo uma luz forte que não é a do túnel.

Novamente a escuridão, novamente a luz. E assim foram algumas vezes em que pareciam se confundir o sonho e a realidade. Lá estava você reproduzindo destino do seu pai. O corpo não respondia. Um peso sufocava o peito. Desorientação absoluta. Alguém que parecia ser um médico lhe dizia que teve um grave ataque cardíaco, que tudo estava sendo feito, que você havia voltado de algumas paradas cardíacas. Foi quando num ímpeto ainda conseguiu levantar um dos braços e pediu: “ Na próxima vez que meu coração parar, não me traga de volta.”

Aqui paramos nossa história. Não contaremos os seu desfecho. Alias, pelo que sabemos hoje em dia, o seu desfecho é um tanto previsível e parece implicar num sofrimento sem fim para o paciente e ansiedade desmedida para sua família. Tudo em nome daquilo que o biopoder pode operar como novos milagres. Mas será que a técnica e o domínio sobre a vida, tidos como absolutos, não oprimem também aqueles que se fazem como condutores do espetáculo tecnológico em que se transformou nossas partidas desse mundo? Em última instância,  sofremos todos. Sofrem os pacientes na medida em que suas autonomias são violentadas, sofrem as famílias que não conseguem ter seus medos e angústias trabalhadas de forma adequada, sofrem os profissionais de saúde pois sabem que não podem oferecer respostas e práticas para todo o conjunto de vulnerabilidades humanas.

No leito de um hospital não existe um conglomerados de sistemas orgânicos próximos do colapso. Existe sim um ser humano cuidado por outros seres humanos. Mas este ser humano que sofre e vislumbra seu fim, deve ter prioridades que transcendam a monitoração dos desatinos do corpo. Ele deve ter a primazia sobre os rumos de sua vida. Sim. Ele ainda vive e por viver é dotado dos tais direitos chamados “inalienáveis”. Que incrível. Estar morrendo não deveria nos roubar a cidadania.

É com base nessa constatação singela que o Conselho Federal de Medicina resolveu fazer a Resolução 1995/2012 que intenta regular o direito que os pacientes tem de, dentro de regulações éticas, morrerem da forma como quiserem morrer. Para isso, sinaliza com clareza e objetividade que, caso o paciente não tenha mais consciência, seus desejos anteriores sejam respeitados. O texto é curto. (Leia Aqui). Muito dos desdobramentos dessa resolução já foram explicitados pelo brilhante artigo de Eliane Brum (Leia aqui) publicado na Revista Época. Queria no entanto ressaltar algo que me sufoca.

Somos militantes da humanização na saúde. Mas percebo que no cotidiano nós, enquanto militantes, reproduzimos o mesmo engodo típico da maioria dos trabalhadores de saúde, qual seja, para nós, é como se a morte não devesse existir, como se não comparecesse em nossos trabalhos. Mesmo enquanto militantes da humanização, priorizamos outras coisas. O tema da morte não é colocado como prioridade nas pautas, afinal, existem tantos problemas de gestão e financiamento, existem tantas coisas a serem feitas. Para que se falar no fim da vida?
Enquanto escrevo esse texto, pessoas estão morrendo sozinhas porque não existe visita aberta ou ampliada na maioria dos serviços. Seres humanos esmagados pela dor estão resgatando os cadáveres de seus entes queridos em necrotérios imundos porque não se pensa na ambiência dos necrotérios. Profissionais de saúde continuam fazendo “pacotes” de cadáveres porque não são estimulados a rediscutirem seus processos de trabalho incluindo o respeito pela subjetividade dos usuários. Quando se discute acolhimento não se discute que também TEMOS QUE ACOLHER TUDO AQUILO QUE DDERIVA DA MORTE nos serviços de saúde, incluso o amplo leque de impactos nos processos de trabalha que a morte determina. E pasmem. É possível se passar dias, meses, semanas e anos se discutindo saúde do trabalhador sem referir a morte no trabalho como um dos elementos determinantes do sofrimento.

A resolução 1995 do CFM vem lembrar que não podemos mais esconder o elefante embaixo do tapete.  É chegada a hora da Política Nacional de Humanização abrir uma frente  que discuta ativamente as formas de atenção e cuidado que podem ser disponibilizados, sob a ótica do método da PNH, com relação aos processos do em torno da finitude. Alguém poderá dizer que isso não é prioritário frente aos graves problemas enfrentados pelo SUS. A questão é que a “não prioridade”, cedo ou tarde, se torna a única prioridade, seja quando estamos lidando com a perda de quem amamos, seja quando tivermos que lidar com a morte enquanto a ÚNICA questão pessoal. Durante a minha morte, não quero pensar que trabalhadores de saúde a minha volta continuem vendo esse acontecimento como uma coisa trivial. Creio que você que está lendo esse texto compartilha do mesmo desejo.