Aqui dentro, sempre: como na canção

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Na sala de espera lotada da unidade de saúde, o misto de vozes, as queixas impacientes, o vai e vem de pessoas e os ruídos persistentes dos cansados ventiladores de teto parecem compor algo que traduz o conturbado ambiente do trabalho em saúde na atenção “básica”.
Entre outros tantos usuários em busca de atendimento, um senhor magro, cabelos grisalhos, roupas gastas, aproxima-se da sala de curativos. Não se deixa anunciar. Olhar sério, bate à porta com a bengala, insistentemente. Há um mês,  comparece à unidade para o curativo de uma úlcera no membro inferior. Enquanto carrega pesadamente a perna enfaixada, sua expressão agressiva e o forte odor espalhado pela ferida afastam as pessoas do seu caminho.
Como nos dias anteriores, o pessoal da enfermagem apresenta as justificativas mais diversas com o intento de se eximir da realização do procedimento até que uma delas, de repente, decide enfrentar o “tormento.”
Naquele dia, ao convidá-lo a entrar na sala, ela insiste no “bom dia”. O velho, mais uma vez, finge não ouvir; apressa-se em ganhar tempo e manter a distância ocupando-se em subir uma das pernas da calça. A moça se aproxima e inicia o procedimento. À medida que a atadura é retirada, a enorme úlcera vai se revelando maior. O forte odor invade a sala. Tudo parecia escorrer do falso silêncio daquela ferida. Era um momento em que, qualquer palavra precisava ser pronunciada; qualquer coisa rogava por ser dita; algo que anunciasse um pouco de vida que fosse. A moça arrisca: gosta de música? Ele sem responder. Ela insiste: vou cantar uma música de Lulu Santos, conhece? Ele a ignora; permanece calado.
Enquanto o soro fisiológico é derramado seguindo seu fluxo generoso e carregando com ele as secreções, ela dispara: “nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia…” canta ritmando mãos e voz com cada passo do procedimento técnico até envolver novamente a ferida; continua cantando até o momento em que retira as luvas – “há tanta vida lá fora” –  até trazer de volta a velha calça que, sob o calor proporcionado pelo passar das mãos no amassado das bainhas, parecia acordar do lugar de antes. Enfim, olha-o nos olhos e sinaliza: pronto, acabou. Ele se retira em silêncio, sem se despedir.
No dia seguinte, volta no mesmo horário. Dessa vez, chega devagar e pára a enfermeira no corredor: “quero que aquela moça que canta a música de Sílvio Santos faça o meu curativo de novo”.
Todas as manhãs, por algum tempo, no mesmo horário, na sala de espera, usuários estranhavam, silenciavam, sorriam…”tudo que se vê não é igual ao que a gente viu há um segundo”… ouvia-se por toda a unidade, a voz que vinha da sala de curativos.
Outra composição parecia estar sendo criada junto ao barulho dos velhos ventiladores….
Volta e meia, a história é contada e recontada no Panatis dos mais diversos modos. Na tenda do conto, na copa, na sala de preparo…  É o nosso amigo que se foi, mas retorna com um convite para ver a vida  lá fora;  atravessa-se nas nossas lembranças provocando risos, desenhando ondas, perseguindo as linhas vivas das nossas peles. “Aqui dentro, sempre…”