Saúde Mental em São Paulo ameaçada de perder mais um serviço importante

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Mais um momento de perplexidade na já tão combalida rede de saúde mental de nossa cidade: o governo ameaça fechar um serviço em nome de uma tendência que vem crescendo em alguns países no sentido de balizar apenas os olhares biologizantes, supostamente científicos, sobre os acontecimentos da vida.

Os argumentos de que serviços de base psicanalítica não contam com eficácia comprovada e de que a produtividade é pequena tomaram a cena. Somos todos testemunhas hoje da onda simplificadora das vivências, numa ditadura da máxima velocidade da resolução de conflitos. A “eficiência” tem pressa. E a indústria farmacêutica também, por motivos óbvios.

Dois movimentos mundiais, o “Pas0deconduite” ( “chega de zero em conduta”, numa tradução livre) e o STOP – DSM têm se batido contra esses argumentos e denunciado os modos de tratamento estratégicamente apressados.

Os links abaixo trazem mais informações sobre os movimentos de resistência:

https://redehumanizasus.net/12583-pas0deconduite-multiplicidade-despedacada

https://redehumanizasus.net/12598-coloquio-na-puc-sp-discute-a-experiencia-de-paris-com-a-questao-da-medicalizacao-da-infancia

https://redehumanizasus.net/13137-stop-dsm-rio-de-janeiro-entra-nesta-luta-pela-vida 

Publicamos abaixo a carta do CRIA – UNIFESP:

 

COMUNICADO OFICIAL DA COORDENAÇÃO E DA EQUIPE TÉCNICA DO CRIA-UNIFESP DIANTE DO ENCERRAMENTO DE SUAS ATIVIDADES

O nosso objetivo é partilhar a indignação diante de grave acontecimento decorrente de uma tendência que vem prevalecendo no sistema estadual de saúde.

O governo de SP, através da Secretaria Estadual de Saúde (SES), assumiu, oficialmente, que serviços de base psicanalítica não contam com eficácia comprovada. Nesse contexto, propõe encerrar o apoio financeiro que há mais de dez anos confere ao Centro de Referência da Infância e Adolescência – CRIA.

O CRIA foi inaugurado em 2002, por um convênio entre a UNIFESP e a SES, com a interveniência da SPDM. É uma instituição que realiza cerca de 1200 atendimentos mensais de bebês, crianças, adolescentes e seus familiares através de uma equipe interdisciplinar que garante uma visão e assistência global aos pacientes.

A assistência prestada pelo CRIA é abrangente e inclui pacientes com diversas patologias graves. Para nosso espanto, a diretriz atual da secretaria de saúde do Estado de São Paulo criticou severamente o fato de atendermos qualquer queixa ou diagnostico afirmando que a população alvo deve ser composta por pacientes psicóticos e autistas. Entendemos que todo sofrimento merece ser escutado e tratado sem delimitar sua atuação em função de uma única patologia, diferentemente do que prega o mainstream atual das práticas médicas e assistências vigentes em nossa atualidade.

Nossos encaminhamentos são oriundos de diversas instituições (abrigos, escolas, creches, conselhos tutelares, vara da infância, hospitais, caps e outros serviços de saúde mental) que sideradas e apavoradas diante daquilo que escapa a nomenclatura dos manuais classificatórios nos procuram e demandam atendimento a esta população, pedindo ainda, em muitas situações, supervisão para a própria equipe.

Em que espaços serão escutadas e trabalhadas nas suas questões, as crianças que estão vivendo um luto pela morte de algum parente próximo, os adolescentes adotados, devolvidos por seus pais para abrigos? Ou mesmo adolescentes em relação fusional com seus objetos primordiais que fazem em seu próprio corpo os cortes simbólicos que não estão operando em seu psiquismo, levando-os a sérias tentativas de suicídio? Sem falar ainda nas inúmeras crianças que estão com fobias que a impedem de ir à escola, estudar ou aprender? Ou ainda os adolescentes chamados delinquentes que buscam a qualquer preço uma referência? E as crianças vitimas de violência, que necessitam de um espaço para falar?

Desta forma, ainda que atendemos, ao longo destes dez anos, crianças autistas e adolescentes psicóticos (temos dois programas estruturados para isso além de um programa de atendimento de bebês que procura identificar sinais de risco para tais patologias e intervir precocemente) não restringimos assistência à estas patologias.

A razão de nossa posição se deve à nossa concepção de clínica que considera como aspecto fundamental a plasticidade dos sintomas apresentados na infância e adolescência, e além disso, o fato do sofrimento destes jovens  estarem referidos a dinâmica familiar a qual estão inseridos. Se isto, por um lado, torna a tarefa clinica muito mais complicada e desafiadora, por outro, também garante as intervenções um grande poder de êxito, tornando esta clinica muito menos sujeita a cronificacão das patologias e por isso muito mais flexível e surpreendente.

Muitos pacientes que foram atendidos no CRIA melhoraram de seus sintomas e puderam retomar sua vida e seu desenvolvimento.  Mas não nos dispomos e nem nunca tivemos a pretensão de isentar os nossos pacientes de fazer calar sua angustia. Os convidamos com disponibilidade a que eles falem e escutem a história que acompanha seu sofrimento, o que se coloca nas entrelinhas, as várias versões sobre o que se apresenta como sintoma.

O fechamento do CRIA representa também uma perda na formação de médicos residentes, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais que la realizam suas primeiras experiências clinicas com crianças e adolescentes e que aprendem que por detrás de um diagnóstico, de uma patologia, existe um ser humano que sofre.

O CRIA, por estar inserido numa Universidade, oferece muitas horas de trabalho de sua  equipe na formação de estudantes e outros profissionais da rede por meio de supervisões clínicas, aulas, palestras, seminários e simpósios. Infelizmente, a SES ignora tais atividades afirmando que a instituição produz pouco.

A produtividade de um serviço que prima pela qualidade não pode ser medida apenas levando em conta números de atendimentos. O CRIA oferece aos pacientes consultas de longa duração para que possam falar de suas questões que ultrapassam a descrição fenomenológica dos sintomas.

A SES, ao fechar o CRIA, leva em consideração as consequências para os pacientes que há anos lá se tratam? Como responderão adolescentes que já tentaram suicídio diversas vezes e que lá encontraram um espaço para falar de seus sofrimentos sem precisarem recorrer a uma forma tão dramática? E as crianças tão vinculadas aos profissionais que há anos as atendem?

Nos resta agora a lamentável tarefa de dizer aos pacientes e seus familiares que há mais restrições de assistência a eles  no quadro da nossa saúde pública. Dizer a eles que o sofrimento que os levou a buscar atendimento não é suficiente nem legitimo de merecer escuta e trabalho. E que o vínculo que fizeram com os profissionais é irrelevante. Ainda que do ponto de vista epidemiológico seus sintomas e queixas componham parte significativa da demanda de atendimento.

 

Outra carta denuncia também a afronta ao SUS:

 

Caros colegas e integrantes da rede, e colegas destinatários a quem endereço também esta mensagem, do meio acadêmico-cientifico brasileiro,

O que esta Resolução do Governo de São Paulo constitui é, como dito por Cristina Ventura e Luiza Victal, uma afronta ao SUS, sem dúvida, mas que também se desdobra em outros níveis:

a) numa afronta aos usuários e familiares que, se muitas vezes apóiam – por razões que não nos cabe aqui nem validar nem condenar – os métodos comportamentais, especializantes e “educativos”, também, quando podem, apóiam veementemente as práticas clínicas amplamente desenvolvidas pelos CAPSis, que afirmam a diversidade de quadros clínicos em uma proposta de tratamento que não faz do espectro autista um selo diagnóstico a ser tratado por formas excessivamente rígidas e especializadas de adestramento comportamental mas privilegia a posição subjetiva – categoria perfeitamente objetivável no plano cintífico – do portador das diversas formas e graus de autismo no laço social. Há inúmeras experiências exitosas nesse sentido, e inúmeros serviços que as exercem e comprovam, todos da rede pública de saúde mental infantp-juvenil brasileira; Além deste fator, que diz respeito à variação n as posições dos familiares dos usuários atendidos, cabe lembrar que uma política pública responsável e conseqüente não pode basear suas decisões e diretrizes em “preferências imediatas” do usuário, caso em que deveríamos cumprir as exigências de uma determinada família que, ainda que por desespero, insista em que um parente seu seja defitivamente internado em um manicômio, ao invés de realizar um trabalho junto a esta família no sentido de, acolhendo sua demanda desesperada, apontar-lhe no entanto outras possibilidades bem mais benéficas para a saúde de todos. Uma política efetivamente dirigida aos interesses da população não pode confundir o interesse de grupos sociais (democratismo demagógico que via de regra esconde outros interesses que não os manifestados por esses grupos ) com o interesse mais amplo da população como instância coletiva e anòminamente pública (o “para todos”) e não a grupos nomeados de indivíduos privados (o “pa ra alguns”). Por isso toda política deve introduzir mediações no conjunto de demandas imediatas, entrecruzadas no meio social.

b) numa afronta a todos os profissionais que enfrentam com disposição e determinação esta clínica espinhosa e difícil, mas viável e frutífera, com grande empenho em sua formação profissional, ética, conceitual e clínica, e que, por terem boa formação científica, não sustentam a unicidade e a hegemonia de uma uma só orientação técnica em seu trabalho como sendo “científica”. A própria concepção segundo a qual só uma orientação seria válida do ponto de vista científico é, em si mesma, anti-científica, revelando, em gritante paradoxo inscrito em seus próprios termos, sua clara condição de enunciado ideológico, tendencioso e dogmático, movido por interesses que estão longe de basear-se na pesquisa e nos anseios verdadeiramente científicos de avanço do conhecimento sobre a realidade, nela incluindo o sofrimento psíquico.

c) numa afronta à democracia, modo de organização política da sociedade que mais se solidariza e compatibiliza com as práticas científicas, por valorizar a diversidade, a liberdade de pensamento e expressão, condições essenciais a todo pensar que, como o científico, requer livramento de amarras, preconceitos, dogmatismos religiosos, ideológicos ou mercantis para seu exercício e florescimento.

d) finalmente, esta Resolução constitui uma afronta às Leis Brasileiras, que não admitem sectarismos, partidarismos e favorecimentos parciais e tendenciosos, privatistas, portanto, nos Atos Públicos. Trata-se de uma Resolução ilegal do Governo de São Paulo, e, como tal, em uma sociedade democrática, requer coibição e,punição pelas instâncias legais, a quem cabe o zelo pelo cumprimento da lei e da justiça no Brasil, particularmente no que concerne às ações do Poder Público, em tese cioso de cuidar do Bem Comum.

O que sugiro? Que empreendamos ações concretas e cabíveis no sentido de impedir um tal desmando e uma tal privatização técnica, acompanhada de favorecimentos financeiros inequívocos por parte da uma gestão pública de saúde, após verificação das condições tanto políticas quanto legais que possam dar respaldo concreto e eficiente a essas ações.

As instâncias universitárias, integrantes da Comunidade Científica Nacional (e internacional) podem e devem ser convocadas a se manifestar, uma vez que é esta comunidade que é invocada como dando sua suposta concordância à escolha exclusiva e injustificável de um único método de tratamento a um convênio público. Convoco prontamente o Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que integro desde sua fundação em 1998 e que hoje coordeno, e que conta em seu qualificado quadro docente com pesquisadores de longa experiência neste campo, bem como Programas e instâncias acadêmico-científicas co-irmãos (Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio, entre outros), e particularmente   Faculdade de Saúde Pública da USP, por estar na cidade e no estado federativo de onde partiu esta Resolução (São Paulo), em particular o Curso de Especialização em Psicopatologia – a cujos colegas envio esta mensagem -, para que se associem a esta reação de repúdio e impedimento desta insustentável, tendenciosa e ilegítima Resolução.

Luciano Elia
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ e Diretor Científico da APPEC – Assistência e Pesquisa em Psicologia, Educação e Cultura, ONG da área de Saúde Mental.